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Marilia Baker traz: “A Bela e a Fera” utilizando os insights dos contos de fada na terapia com casais. Uma perspectiva arquetípica sob a luz da abordagem ericksoniana

 

      “A criança acredita naquilo que lhe contamos e não duvida de nossa verdade. Ela acredita sinceramente que a rosa que foi colhida venha a desencadear tragédia numa familia. Ela acredita sinceramente que as patas esfumaçantes de uma fera humana que acaba de matar sua prêsa, sintam-se envergonhadas quando confrontadas com uma jovem que está morando em seu castelo. A infância acredita em mil outras coisas bem ingênuas.”

    “E é um pouco dessa ingenuidade que eu vos peço ao assistir este meu filme. E, para que todos nós tenhamos a mesma oportunidade, deixai-me enunciar três palavras mágicas que são os verdadeiros “abre-te sésamo” da infância: “ Era um vez”… “

 Jean Cocteau, autor, cineasta

La Belle et la Bête (1946)

    O conto clássico “A Bela e a Fera” tem sido um dos meus favoritos, desde que era menina em São Paulo, minha cidade natal. Através dos anos esta história fascinante converteu-se em interesse científico, quando comecei a aprender sobre terapia de casais e a vivenciar, em meu casamento, as complexidades e as vicissitudes das relações a dois. Ao longo dos anos, venho retornando a esta história muitas vezes, revisitando suas múltiplas versões e formas. A Bela e a Fera tem sido, para mim, uma fonte muito fértil de inspiração e insights profundos, principalmente desde que assisti, em algum ponto de minha juventude, a magnífica obra surrealista do cineasta Jean Cocteau.[1]

   Desde então, ao longo de minha vida de adulta e profissional, tenho mantido interesse clínico, curiosidade respeitosa e científica por esse tema, a fim de compreender como é que dois seres humanos – dois indivíduos até então cada um em seu canto – são “atrelados” pela Natureza e lançados juntos pelo mundo afora como companheiros de caminhada existencial.

  Tenho testemunhado em meus clientes e vivenciado em minha vida pessoal, as vicissitudes e prazeres da parceria conjugal, e simplesmente fico maravilhada ao observar como os casais constroem seu caminho a dois e como ‘fazem acontecer as coisas’ como que por mágica[2] – e, como diria Cocteau,  como um verdadeiro  ’abre-te sésamo’ da vida adulta. Observar como levam a cabo seus projetos de vida – juntos e separadamente – é um privilégio. Privilégio também é observar seus estilos de colaboração e sua cumplicidade amorosa, além das complexidades de seu relacionamento. Minha observação aguçada também me conduz pelas linhas sinuosas e labirintinas de seu desenvolvimento e sua evolução psicológica enquanto casal e como seres humanos – separados e juntos – sob a égide do matrimônio ou da relação permanente, estável.

  A história da Bela e a Fera tem sido muito útil em meu trabalho como psicoterapeuta ericksoniana no mundo multicultural em que vivo aqui no Arizona. Temos residentes de todas as etnias, como os americanos anglo-saxões, os afrodescendentes, os nativo-americanos, os mexicano-americanos, os ítalo-americanos. Temos brasileiros e latino-americanos de todos os países  portugueses e demais europeus de todas as procedências  O tema do conto é uma metáfora universal, um poderoso arquétipo que como tal penetra o mais profundo da psiquê humana qual seja sua cultura de origem. A narrativa – e sua manifestação amplificada na tela – constitui excelente ferramenta para educar os jovens casais na fase do noivado ou nos primeiros anos do casamento e é ilustrativa para os casais que estão ‘emperrados’ na luta pelo poder.

  A história da Bela e a Fera é multidimensional e pode ser utilizada com casais em qualquer outra fase de seu ciclo de vida ou etapa de desenvolvimento psicológico, qual seja sua origem étnica, sua orientação sexual, ou a cultura de onde provém. Importante enfatizar que nem sempre é necessário sugerir este tipo de tarefa terapêutica. Há muitas outras, as que denomino metáforas de ação, que emergem de cada situação à minha frente. Sigo a orientação de Milton Erickson: eu crio e ajusto a modalidade terapêutica a cada indivíduo, a cada casal[3]. As possibilidades são infinitas.

  Em geral, minha  orientação ao longo dos anos foi a de sugerir ao casal que leia a história ou que assista, na intimidade do lar, as versões da A Bela e a Fera em filme, e  que tomem nota, em separado — cada um em seu canto — dos momentos que mais chamaram atenção ou, significativos, tanto  para ele como para ela. Em seguida, que discutam juntos as cenas, diálogos, e momentos que mais os tocaram. Posteriormente, que tragam ao consultório, os pontos importantes para serem analisados juntos. Não avanço a eles nada de minhas opiniões e comentários. Progressivamente, quando é o caso, vamos construindo juntos na sessão, o que é de importância para o casal no momento, sempre cortando sob medida, ajustando à situação e utilizando terapeuticamente..

   Também venho sugerindo esses filmes – e outros, em todos os países por onde tenho ensinado terapeutas de casais, como meio sumamente eficaz para atingir os objetivos do treinamento. Fundamentalmente, o assistir um filme, particularmente na tela grande do cinema (ou no teatro, no anfiteatro, como bem o descobriu a Grécia antiga) desencadeia emoções inconscientes, estimula sensações, associações e imagens internas, como na hipnose ou nos sonhos. Cinematerapia, musicoterapia, arte terapia, dança terapia e outras modalidades expressivas, são sumamente úteis e devem ser sempre consideradas como ferramentas utilizáveis terapeuticamente.

  Essas vivencias contribuem enormemente para o aprofundamento na terapia. Metáforas, histórias, contos de fadas, tradições populares, ‘causos’ e músicas – tanto populares como clássicas, podem e devem ser utilizadas terapeuticamente para provar um ponto, contornar a resistência, e facilitar o crescimento psicológico. E, mais precisamente, conjugar elementos da psicologia analítica, arquetípica, à hipnoterapia e à psicoterapia ericksoniana engendra intervenções concisas, precisas e incisivas. Acredito profundamente nesse princípio e nessa orientação, como psicoterapeuta ericksoniana que muito se beneficia da teoria jungiana e da psicologia arquetípica.

  Meu interesse profissional na caminhada existencial a dois surge também de minha própria experiência nestes últimos 45 anos, dentro de um casamento transcultural, internacional. Eu sou brasileira, como mencionei, e meu marido é americano, do Kansas. Ao longo destas quatro décadas e meia tivemos “muitos casamentos dentro do casamento”. Ou seja, vivenciei e continuo experienciando, dia após dia – juntamente com meu marido – as etapas de crescimento psicológico e as tarefas do ciclo de vida características da “jornada existencial através de um caminho de crescimento e evolução”.[4]

  Essa ideia dos “muitos casamentos dentro do casamento” se baseia nos conceitos desenvolvidos pelos psicólogos californianos Ellyn Bader e Peter Pearson, que ilustram como o casal passa por muitos estágios normais e naturais de crescimento psicológico ao longo de sua caminhada pela Vida. A percepção profunda e abrangente que o casal Bader & Pearson teve ao demonstrar que essas etapas são ou parecem ser uma réplica do ‘nascimento psicológico’ e evolução do bebê e da criança, tem sido sumamente útil no meu trabalho.[5]

  São cinco etapas básicas, segundo o modelo Bader & Pearson, modelo este que se distingue por enfatizar as trajetórias, os obstáculos e desafios normais que todos os casais enfrentam:

 1) Vínculo emocional exclusivo ou simbiose: esta é a fase romântica  de sentimentos de união total, exclusiva, só a dois. O novo par já não funciona como “só eu” indivíduo, mas já se torna “nós dois”. É a chamada fase do romance, do noivado, da lua-de-mel e dos primeiros meses do casamento. É uma fase-alicerce, de fortalecimento da sensação do “nós dois”, de fundamentação, que prepara a díade para os impasses ou crises de crescimento de virão adiante. Nesta fase as diferenças entre o casal são minimizadas inconscientemente – a ênfase é nas semelhanças.

 2) Diferenciação: gerenciando a ansiedade. Esta é a fase em que cada parceiro busca manejar, gerenciar sua ansiedade, causada pelas diferenças que naturalmente, forçosamente, vão emergindo. Este movimento em direção à diferenciação é normal, saudável, vem de dentro; ou seja: como na criança,  o movimento psicológico é direcionado à individuação, a cada um tornar-se “eu mesmo”. O casal necessita estar muito bem informado quanto à esta fase e as seguintes, assim como o terapeuta que estará trabalhando com êle. O preparo teórico, a formação e a capacitação educativa e clínica do terapeuta de casais é condição sine qua non.

 3) Exploração: afastando-se do “só nós dois” de volta ao “só eu”. Este movimento é normal também, se dentro de parâmetros saudáveis na relação a dois. Ou seja, cada parceiro já começa a ter consciência de que é um in-dividuo – indivisível  – dentro da díade, do casamento. Cada parceiro começa a afastar-se psicológica e concretamente das pressões do vínculo emocional exclusivo inicial, e gerencia sua ansiedade sobre as diferenças da melhor forma possível (ele prefere mesmo o futebol e ela só gosta mesmo é das novelas). Dessa forma, vão explorando progressivamente sua individualidade como pessoa independente. Como dizem Bader & Pearson, o objetivo desta fase é levar o casal a redefinir sua identidade própria, indivisível, e saber sustentá-la quando sob estresse para não regredir à simbiose.

 4) Reconexão ou reaproximação:  aprendendo a navegar saudavelmente pelas flutuações entre o nós dois e o só eu – aqueles movimentos e oscilações do “ir e vir”- que prevalecem na intimidade. Este movimento foi denominado de rapprochement por Mahler em seus estudos e Bader & Pearson o utilizam também. A diferença psicológica agora, nesta fase, é que o “nós dois” adquire uma qualidade diferente, mais consciente, mais forte, pois que respeita a existência separada, individualizada dos “só eu”, dentro da parceria. Nesta fase o casal já entende o “só eu” como: sou eu – “sou eu” dentro do “nós dois”… Eu sou eu, você é você, mas  sei somos dois.

 A sensação agora é mais consciente:  somos dois, mas temos fronteiras, limites saudáveis; somos dois indivíduos independentes que estamos juntos conscientemente. A oscilação mantém uma boa tensão em direção ao estabelecimento e fortalecimento da intimidade. E, finalmente,

 5) Sinergia: movimentando-se confortavelmente entre a independência e a interdependência. Esta fase emerge quando o casal alcança um nível mais maduro, mais consciente de autonomia e plenitude – adquire individualidade dentro da díade. Ou seja, os parceiros podem movimentar-se entre a independência e a interdependência com muito mais certeza e convicção do que na fase anterior: eu sou eu, você é você; somos nós dois simultaneamente. Como estipulam Bader & Pearson “uma sensação de intimidade, profunda e abundante, de vulnerabilidade e sustento emocional” emerge de forma segura dentro da díade.

  Estas cinco etapas básicas se desdobram em combinações de fases, dependendo de onde se encontra cada um, no casal, em sua evolução psicológica. Por exemplo, um deles pode estar ainda na fase simbiótica enquanto que o outro já progrediu em direção à diferenciação ou exploração. O tratamento clínico consiste então em formular adequadamente as intervenções terapêuticas em direção ao crescimento saudável para o casal. Naturalmente também, existem, neste modelo, formulações específicas e técnicas apropriadas para tratar das psicopatologias e distúrbios de caráter.[6]

 O conto de fadas intitulado “La Belle et la Bête” (A Bela e a Fera) data dos tempos da Revolução Industrial na Europa, no século XVIII. Baseia-se numa história ainda mais antiga, milenar, a de Eros e Psiquê[7], transformada através dos séculos por várias culturas. Acredita-se que já era existente nas tradições populares e mitologias greco-romanas, e nas colonizações do império romano na Africa do Norte e no Egito, e que foi retomada por Lucius Apuleius, (em português, Lúcio Apuleio), autor norte-africano, bérber, de filiação e cidadania romana. Ele a recontou ao redor de 170 A.D. em seu épico A Metamorfose também conhecido como O Asno de Ouro. Conceitualmente – frente à caraterística multicultural do ser humano – é importante enfatizar que sou muito consciente do movimento de constante transfertilização das idéias, dos temas, das tramas e motins, assim como da evolução cultural nas narrativas de cada autor e sua procedência. A globalização sempre existiu, desde priscas eras.

  Lucius Apuleius ou Apuleio, por exemplo, nasceu na cidade de Madaurus, de colonização romana, hoje em dia conhecida como M’Daorouch, na Argélia. Suas extensivas viagens por todo o mundo greco-romano do Mediterrâneo onde ainda predominava o culto de Isis, do grande império egípcio, seus estudos sobre filosofia, literatura, medicina e religião – além de ter sido iniciado como ‘sacerdote de Esculápio”, o grande deus da medicina – me faz pensá-lo como se ele, Apuleio, metaforicamente ainda estivesse entre nós, como médico-psicoterapeuta, escritor, contador de histórias, e profundo conhecedor da arte e da ciência da hipnose ou enkoimesis (como ensinada e praticada no templo de Esculápio).

  O conto d’ A Bela e a Fera, que apareceu na Europa mil setecentos anos depois de Eros e Psiquê, trata, enquanto metáfora, da possibilidade da transformação e da transcendência humana através do processo de auto-conhecimento, altruísmo  capacidade moral e ética, e do diálogo consciente entre o casal. Em sua essência, esta história aborda as vicissitudes de se viver a dois, dentro de uma relação permanente. Revela o surgimento, a formação e a evolução da consciência. Fundamentalmente: ambas obras tratam do despertar, do nascer da Consciência. A narrativa  nos presenteia com os passos de desenvolvimento e evolução em direção à autonomia e à individuação. Igualmente, nos instrui sobre o poder transformativo do amor conjugal, a dois, penetrando as profundezas e raízes de nossa Alma. E, como já mencionei anteriormente, o conhecimento, por parte do psicoterapeuta, das energias arquetípicas que atuam no processo do “ser e estar casal” poderá vir a facilitar intervenções clínicas concisas, precisas e elegantemente cortadas sob medida.

   A história intitulada La Belle et la Bête foi, pelo que se sabe, originalmente escrita na França por Madame Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (1695-1755) cuja extensa produção literária era amplamente reconhecida em sua época. Apareceu, por primeira vez na sua coleção Les contes marins et la jeune americaine (Contos marítimos e a jovem americana), em 1740[8]. O elemento  enlaçador neste título é a alusão aos contos narrados por uma velha e sábia preceptora a uma jovem noiva durante sua travessia pelo oceano Atlântico para estabelecer-se na América do Norte[9].

  Minha forte impressão, ao tomar conhecimento dessa narrativa há alguns anos atrás, foi a de “sentir a presença” do contador de histórias Apuleio nesta travessia, inventada por Madame de Villeneuve… Ele, que cruzava as águas do Mediterrâneo antigo, estaria cruzando agora, na minha imaginação, outros mares em direção ao Novo Mundo, juntamente com aquela preceptora francesa, velha e sábia, que contava à jovem casadoura a história da Bela e a Fera. Hoje em dia, no século XXI, sou eu – Marilia, terapeuta de casais, cruzando continentes e culturas – “a velha e sábia preceptora,”  conhecedora dos mesmos princípios de hipnose que Apuleio certamente aprendeu sob a égide do deus Esculápio em Epidaurus – a que inicia os psicoterapeutas e os jovens casais, naqueles conhecimentos e habilidades fundamentais para a vida a dois.

  É interessante observar que tanto a versão de Madame de Villeneuve como a de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont em 1756 – a versão mais conhecida nas Américas – surgiram durante um período de intensas mudanças politicas e sociais, no qual os ideais democratas começavam a emergir na consciência nacional. Ideais esses que se fermentaram tanto nas colonias norte-americanas por muitas décadas antes de 1763, até sua independência da monarquia inglesa em 1776, assim como na França, fomentando sua revolução, simbolizada pela queda da Bastilha, em 1789. Ambos movimentos sócio-políticos se rebelavam contra a tirania em todas suas formas, ansiando por liberté, egalité et fraternité entre os seres humanos.

  A ideia do matrimonio moderno, baseado na liberdade individual para escolher; na igualdade de oportunidade entre os companheiros de caminhada existencial e na confraternização – entendida aqui como solidariedade, conversação ou diálogo profundo, intimidade, convivialidade, cumplicidade amorosa e prazer mútuo, começava a emergir em ambas margens do oceano Atlântico como uma possibilidade verdadeira.

   A díade é o fulcro, o coração do nosso tecido biológico e social, ou seja, o casal é a matriz básica – a fonte, o âmago de dentro do qual as famílias são engendradas. Desde tempos imemoriais os seres humanos buscam e imaginam a plenitude a dois. O ‘matrimonio sagrado’ entre Eros – a força vital, e Psiquê – a vida que se torna consciente produziu uma filha, chamada Prazer (Voluptas), Alegria, Delícia, ou mesmo, Plenitude. [10] Os casais em relacionamentos conscientes, saudáveis e funcionais, são vitais para nosso sucesso como comunidade humana viável. Uma obra filosófica recente, de vital importância para a psicologia do relacionamento saudável no amor humano, intitulada O nascimento do prazer: uma nova geografia do amor pela aclamada psicóloga da Universidade de Harvard, Carol Gilligan, aponta o caminho para um nível ainda mais profundo de possibilidades saudáveis dentro das relações humanas.[11]

  Apesar de sempre sugerir aos meus treinandos a magnífica versão cinematográfica de Jean Cocteau porque as possibilidades de utilização terapêutica são infinitas, mas bem mais complexas, quero enfocar-me neste momento na versão americana, produzida pela equipe Disney. Ambas versões, a propósito, são pouco conhecidas, não-reconhecidas, e não utilizadas como tarefa terapêutica para clientes e ensinamento de treinandos, tanto no mundo europeu como deste lado do Atlântico.

   A versão em desenho animado d’ A Bela e a Fera, na realidade uma opereta muito sofisticada, realizada em 1991 e relançada em 2002 é sumamente instrutiva para a compreensão do que quero dizer “como os casais são atrelados e lançados juntos pelo mundo afora  e, como seu caminho evolutivo se processa. Uma pausa transcultural: o sobrenome do fundador deste grupo cinematográfico, Walter Disney, tem suas origens na cidadezinha de Isigny-sur-Mer, em Normandie, na França. Segundo suas informações biográficas, a família Disney é descendente de Robert d’Isigny que seguiu o principe Guillaume le Conquérant em suas batalhas para a conquista da Inglaterra em 1066. Posteriormente este sobrenome foi anglicizado para Disney. O trajeto familiar ao longo de um milênio foi da Normandie à Inglaterra, depois à Irlanda, em seguida ao Canadá e no século XX para Hollywood, California: do orginal D’Isigny na Normandia, a Disney.[12] Multiculturalismo e transfertilização em ação.

  E assim como na extraordinária obra-prima de Jean Cocteau, a equipe da Disney: os escritores, os produtores, diretores, os responsáveis pela animação, todos os artesãos, os atores e suas vozes todos eles me pareceram haver sido tocados pela energia dos arquétipos através das imagens e efeitos especiais, a música e suas letras na versão em desenho animado. E, perguntariam vocês que estão lendo este meu trabalho, onde, como, porquê vejo tudo isto? Como é que posso ver tão claramente a formidável fôrça arquetípica numa produção de desenho animado, numa história para crianças, um mero conto de fadas…?

   Para começar, somos apresentados a um príncipe enfeitiçado, transformado em animal, uma fera selvagem – um monstro que habita um castelo sombrio, encantado, congelado no tempo por uma maldição antiga (a herança intergeracional). Todas criaturas deste reino estão sob o feitiço de uma “velha bruxa/bela fada” que transformou em fera o príncipe egoísta e malcriado, assim como todos os habitantes em seu castelo. Esta maldição somente será rompida quanto a Fera aprenda a amar e a ser amada – ou seja, quando aprenda a conviver saudavelmente numa relação a dois.  Os terapeutas de casais estão bem familiarizados com este quadro: indivíduos, homens ou mulheres, casais, nos mais diversos estágios de seu ciclo de vida, buscando ajuda terapêutica, congelados no tempo debaixo de uma ‘maldição’ intergeracional em sua família de origem, sob o peso de suas feridas de infância e ‘estancamentos’ em seu desenvolvimento psicológico.

  Belle é uma jovem bonita e diligente, de cabelos negros, curiosa, inteligente e de espírito independente, que vive com seu pai, inventor industrial, excêntrico  É uma jovem que está em contato direto com sua intuição e uma curiosidade, digamos até, científica. Ela é, acima de tudo, uma genuina amante dos livros. Tem grandes aspirações e ideais, sonha com um brilhante e aventuroso futuro. Quer muito sair do povoado em que vive e conhecer o mundo. Além disso, sente-se sob a pressão da sociedade para que se conforme ao molde local e que simplesmente aceite casar-se com Gaston, o galã da vila. Ao repudiá-lo, Belle se coloca em risco. Contudo, mantém-se fiel a si mesma e a seus valores. Muito mais vai lhe exigir a Vida…

  Novamente, este cenário é bastante familiar aos psicoterapeutas.

  Os desafios que toda jovem enfrenta se desenrolam perante nossos olhos: sonhos e ilusões sobre as relações conjugais no dia-a-dia do casamento; como realizar a separação psicológica da família de origem, particularmente como separar-se psicologicamente do pai; desejo de intimidade e confraternização com o parceiro; choque de ideais com as pressões sociais. A esses todos desafios se acrescentariam hoje decisões sobre os rumos de sua carreira; ter filhos ou não ter filhos; saber permanecer fiel a si mesma e a seus valores e não submeter-se perante crenças limitantes, errôneas, infligidas pela família ou pelo grupo social. Psicologicamente  estes desafios são igualmente verdadeiros para os rapazes. Somos ambos, temos partes de ambos e de todos: Belle, Fera, castelo, vila.

  Quando o pai se torna prisioneiro no castelo da Fera, Belle se oferece para ficar em seu lugar. Este é o momento crucial da história: aceita ficar no castelo para sempre. Fera se surpreende por esta decisão da jovem e libera o pai, jogando-o numa carruagem de volta à vila com estas palavras: “Ela já não é mais seu problema”. Importante observar aqui elementos do rito de passagem, o ritual tradicional do casamento – em condições normais, na vida real. Na cerimonia tradicional, no casamento religioso, por exemplo, o pai leva a filha ao noivo, que a espera no altar. O pai a “entrega voluntariamente” ao futuro marido. A passagem para outro nível de relacionamento, outro status, outro nível de consciência, é então efetuada, abençoada por um sacerdote ou rabino, que representa um ‘poder mais alto’ e testemunhado pela comunidade. Neste momento, como implica Fera, acontece a transição para um novo patamar: “sua filha já não é mais da sua conta, agora ela é minha mulher.” Corta-se, ritualmente, o vínculo psicológico (infanto-juvenil original). A filha é agora um adulto que vai formar novos laços psicológicos e afetivos a nível adulto.

   Para Belle e a Fera, as fôrças do Inconsciente e da Natureza estão definitivamente em jogo – os dois jovens estarão encerrados juntos no castelo para sempre… A fortitude, capacidade e o alcance moral de Belle, seu altruísmo, se esticam ao limite: ela se sacrifica a si mesma para salvar o Outro – seu pai – mas não sem antes pedir à Fera que “venha à luz.”  Naquele momento Fera tem uma forte intuição de que Belle poderá romper a maldição, ou o feitiço.

   Conforme a trama se desenrola, presenciamos então a evolução psicológica dos dois: desde a atração inconsciente, à luta pelo poder, à crise decisiva, ao diálogo profundo, ao rapprochement até chegar ao relacionamento consciente[13]. E, finalmente, ao despertar da consciência – a dele, Fera, quando a libera como prisioneira do castelo “porque eu a amo” (diz êle a Horloge), até a cena final quando Belle declara seu amor à Fera agonizante, que então se transforma em Príncipe. Ambas versões cinematográficas ilustram esse despertar da consciência, pelo artificio heurístico de representar uma ascensão às alturas – uma transformação física – significando a transcendência individual e do casal, ou matrimonio sagrado.

  Esta versão em desenho animado é fabulosamente rica de significados e nos convida a refletir na transfertilização entre as culturas em nosso mundo e sua evolução. Cada detalhe, desde as imagens, as canções, a presença dos objetos benevolentes enfeitiçados, todos eles nos levam à reflexão, tanto como terapeutas como clientes. A metáfora universal chega ao âmago do espirito e nos transcende à Alma. Estou ciente também de muitos outros significados bem mais complexos, dentro da psicologia profunda. O importante no momento, no aqui-agora, é compreender o movimento e as energias dos arquétipos: somos ambos Bela e Fera; Lumiére e Horloge, taça trincada, conteúdo e continente como Madame Samovar. Somos castelo enfeitiçado, liberado e redimido; somos herança intergeracional, feridas conscientizadas, liberadas e redimidas. Somos sociedade humana redimida pelo amor consciente.

  Gaston, o galã narcisista é um personagem obscuro, malevolente, que pode ser interpretado também como representando a hipocrisia social e suas falsas crenças, conduzido a sua própria destruição pela arrogância, egocentrismo e sua total falta de empatia. Na obra de Cocteau encontramos esses traços narcisistas simbolizados por Ludovic, irmão de Belle e por seu amigo, Avenant, apaixonado por ela. Nessa versão de Cocteau, a cena de morte de Avenant no pavilhão da deusa Diana, pode ser contemplada sob um caleidoscópio de férteis possibilidades, dada a genialidade de seu criador. Nesse mesmo momento, morre a Fera, que se transforma no Príncipe Ardent. Morre tanto o humano, imperfeito, como o animal, incompleto. Belle e Príncipe Ardent estão livres da maldição e transcendem o humano, ascendendo às nuvens[14]. Artificio heurístico semelhante é usado na versão Disney com a Fera, enquanto vai se transmutando em Principe, humano.

  Voltando à versão da Disney: os objetos encantados do castelo, Lumiére, o castiçal sábio e iluminado, representa essa parte nossa que nos ajuda a seguir nosso coração, nossos sentimentos, nossa intuição. Da mesma forma, a Madame Samovar, velha e sábia chaleira, governanta do castelo, é maternal, mas à antiga: como adulto ela nem sempre, nunca aliás, dirige suficiente atenção filho, Zip – a xicrinha trincada – que sempre diz a verdade… (esse trincado, essa ruptura, ao meu ver, poderia simbolizar as feridas de infância ou narcísicas). E Monsieur Horloge, o relógio empolado, inflexível, que sempre quer estar com a razão, como nosso ego.

   Muitos outros objetos simbólicos, milenares,  aparecem em ambas versões:  a rosa, símbolo da sexualidade madura e da sabedoria, está, ao longo da narrativa,  em perigo de não ser usada. Quando a última pétala cai… tem-se a esperança de que os jovens já estejam a caminho do “aprender a amar e saber-se amado”.

  Da mesma forma, encontramos o espelho mágico (o espelho de Afrodite) o “portal da verdade” – elemento já presente nos mitos egípcios e greco-romanos, legados através dos milênios até nossos dias, inclusive no encontro terapêutico. Esse espelho é essencial para facilitar-nos “ver” nossas verdades refletidas nos olhos do amado e dos demais. Revela os olhos, que são “os espelhos da alma”. Reflete o Eu e o Outro. É símbolo do auto-conhecimento; é conectado com a revelação, beleza (vista aqui como pureza de intenção, verdade, lealdade). Tudo isso a serviço de nosso crescimento psicológico, de nossa conscientização. A Fera só vai ser converter de novo em ser humano quando aprender a amar e ser amada, aprender a conviver a dois. O mesmo sucede com Belle, quando aceita que o objeto de seu amor, a Fera – é imperfeito – vai daí sua forma animal. Além disso, Belle tem de aprender “a ver além das aparências . A implicação aqui é o processo de aprendizagem daquelas destrezas e habilidades para conviver a dois. Essencialmente também é a passagem para o despertar da relação consciente: o viver a vida conscientemente.

   Na cena final quando a maldição é desfeita e todos voltam à forma humana, Zip, a tacinha trincada, pergunta à mãe: “Mamãe, mamãe, então eles vão viver felizes para sempre?” Ao que Madame Samovar responde: “Claro que sim, meu filho, claro que sim”….

  Contudo, nós, os terapeutas de casais, sabemos que na vida real a coisa se desenrola de outra maneira, não é mesmo? Sabemos das tarefas do ciclo de vida, dos estancamentos ou impasses, das crises de crescimento e do processo constante de renovação no casal; ou seja, conhecemos a evolução, o desenvolvimento psicológico da díade.

  E, por isso mesmo, se me permitem, devo ir-me agora. Belle e Príncipe Ardent estão me esperando lá no consultório, temos hora marcada ao meio-dia. Isto porque estamos a poucos anos de suas bodas, e agora eles tem filhos, estão enfrentando problemas em seu relacionamento – os chamados impasses de crescimento. Sinto-me muito honrada em ser sua terapeuta!


[1] Jean Cocteau, La Belle et la Bête, filme estreado na França em outubro de 1946.

Escrito e dirigido por Jean Cocteau. Formato em DVD pela Criterion Collection, 2003.

[2] Essa mesma curiosidade respeitosa e científica pelo casal Erickson e deslumbramento por sua capacidade incansável de ‘fazer acontecer as coisas como que por mágica’ que me levou a compor Homenagem a Elizabeth Moore Erickson: mulher extraordinária, profissional, esposa, mãe e companheira. Editora Diamante: Belo Horizonte, 2004.

[3] Dr. Erickson afirmava: “Invento uma teoria nova e um enfoque novo para cada indivíduo.” Reside aí a pedra angular de sua obra.

[4] Bader, Ellyn & Pearson, Peter.  (1988)  In Quest of the Mythical Mate. A Developmental Approach to Diagnosis and Treatment in Couples Therapy. Brunner/Mazel: New York.

Website: www.CouplesInstitute.com

[5] Este seu modelo evolutivo foi adaptado a partir das pesquisas e achados da psicóloga Margaret Mahler et al (1975) The Psychological Birth of the Human Infant, traduzido ao português como O nascimento psicológico da criança: simbiose e individuação. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

[6] Para tanto, deve-se enfatizar mais uma vez, que a preparação e formação adequada do terapeuta de casais é condição indispensável – sine qua non – deste trabalho terapêutico.

[7] Este conto encontra-se também sob os nomes de Amor e Psiquê e Cupido e Psiquê, este último o titulo preferido por Apuleio.

[8] Fonte: en.wikipedia.org/wiki/Gabrielle-Suzanne_Barbot_de_Villeneuve

[9] No conto original de Apuleio O Asno de Ouro, escrito há dois mil anos, a história de Cupido e Psiquê é narrada por uma velha comadre, de reputação dúbia, que, cúmplice dos bandidos que raptaram uma jovem noiva, Charité, no dia de seu casamento, tenta distraí-la e alegrá-la com essa história de amor que termina bem.

[10] Consulte: Erich Neumann (1993) Amor e Psiquê. Uma Interpretação Psicológica do Conto de Apuleio.  São Paulo: Cultrix. Também: Robert Johnson (1987) She. A Chave do Entendimento da Psicologia Feminina. São Paulo: Editora Mercuryo.

 [11] Carol Gilligan (2003) The Birth of Pleasure. A New Map of Love. New York: Vintage Books. Gilligan contrasta seus estudos sobre meninas pre-adolescentes e sobre casais em busca da verdade em suas relações com os mitos de Édipo e Eros e Psiquê. Este último é o que oferece, segundo a psicóloga, esperança para o amor adulto, saudável, consciente.

[12] Fonte: en.wikipedia.org/wiki/Walt_Disney

[13] Estes conceitos evolutivos foram enunciados também pelo psicólogo Harville Hendrix em seu trabalho (1988) Getting the Love You Want. A Guide for Couples. Traduzido ao português (2007) por: Todo o Amor do Mundo. Psicologia para Casais. Pôrto, Portugal: Casa das Letras. Pesquise: www.ImagoRelationshipInternational.org

 [14] Na versão original de Apuleio,  Cupido & Psiquê, o deus Zeus faz ascender a mortal Psiquê às nuvens do Olimpo, para tornar-se imortal como os outros deuses e como seu marido, Cupido ou Eros.

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